As startups buscam criar formas diferentes de atender a seus clientes, com base no entendimento da natureza de seus anseios e no desenvolvimento de interfaces atrativas e eficientes.
*ANDRÉ DANTAS
Existe a perspectiva de que podemos usar técnicas de inovação para desenvolver pessoas, serviços e processos voltados para uma realidade sustentável do transporte público urbano. Essa perspectiva decorre da observação de todo o processo de transformação que vem ocorrendo nos últimos anos em outros setores econômicos e também na mobilidade urbana. Atores não tradicionais, como as empresas de tecnologia inovadoras ou startups, desenvolvem “soluções” que reinventam a forma de oferecer serviços individualizados de mobilidade e, assim, conquistam uma parte significativa do mercado. Diante das condições atuais e da constatação de que o modelo de negócio atual não se manterá indefinidamente, muitas empresas operadoras de transporte público já vislumbram as potencialidades da inovação na superação dos desafios do setor.
Avanços tecnológicos recentes e as “soluções” para a mobilidade urbana
Nos últimos 10 anos, os avanços nas telecomunicações e na capacidade de processamento e armazenamento de dados criaram um ambiente propício ao advento de novas “soluções” para a mobilidade urbana. As startups buscam criar formas diferentes de atender a seus clientes, com base no entendimento da natureza de seus anseios e no desenvolvimento de interfaces atrativas e eficientes. Para tanto, exploram ao máximo a coleta e a transmissão de dados por meio de smartphones conectados à internet. No caso da mobilidade urbana, tais startups tornaram-se, rapidamente, marcas mundialmente conhecidas, porque possuem atributos diferenciados como forma de pagamento, disponibilidade em tempo real e flexibilidade. Assim, conquistam clientes descontentes com os serviços prestados por outros modos de transporte.
Em alguns casos, essas empresas de tecnologia se beneficiaram de lacunas regulatórias no que diz respeito a explorar relações trabalhistas, tributárias e administrativas que proporcionam vantagens consideráveis em relação aos atores tradicionais da mobilidade urbana. Dessa forma, as soluções, via de regra, maximizam o benefício do indivíduo (cliente), explorando intensamente todos os recursos existentes (espaço e infraestrutura).
Apesar de atuarem na área de mobilidade, o modelo de negócio dessas empresas de tecnologia não se resume a proporcionar o acesso eficiente às atividades urbanas. Na verdade, a maioria dessas startups usa o problema da mobilidade urbana como um instrumento para “capturar” o cliente e com ele desenvolver relações comerciais que extrapolam a realização de uma viagem origem-destino em um modo de transporte qualquer. Objetivam, assim, intermediar e/ou proporcionar negócios baseados no processamento do perfil do cliente – muito além, por exemplo, do pagamento de uma tarifa por um percurso realizado. Essa abordagem segue aquela empregada por outros gigantes da tecnologia como Google, que deixou de ser uma ferramenta de busca e disponibilização de informações pela internet para ser uma plataforma de publicidade e relacionamento com bilhões de clientes.
Além do lucro para as empresas de tecnologia, principalmente daquelas de caráter disruptivo, o enfoque nas “soluções” de mobilidade urbana voltadas para o indivíduo gera consequências adversas e que ainda não foram totalmente compreendidas. No curto prazo, já se observa uma série de relatos sobre as ineficiências provocadas, tais como o aumento dos congestionamentos, acidentes e poluição. Ademais, essas “soluções” disruptivas já têm impactado negativamente no enfraquecimento das redes de transporte público coletivo, pois incentivam o transporte individual e, consequentemente, aceleram o círculo vicioso da mobilidade urbana (mais automóveis geram mais congestionamentos e aumentam o tempo de viagem, o que produz elevação nos custos, que são repartidos com um número cada vez menor de usuários do transporte coletivo e que retroalimentam o círculo com mais atratividade para automóveis) e, assim, produzem a perspectiva de um futuro sombrio.
Como exemplo e evidência dessa situação preocupante, o estudo dos impactos dos serviços de transporte por aplicativos na mobilidade urbana, publicado nesta edição do Anuário NTU, quantifica a perspectiva dos prejuízos sociais dessas “soluções”. Considerando as simulações para várias cidades de portes diferentes e os impactos econômicos e ambientais, constatou-se que os prejuízos variam significativamente à medida que há a transferência das viagens do transporte público coletivo para o transporte individual por aplicativos. No caso de São Paulo (SP), para uma perda de 5% da demanda do transporte coletivo, haveria o impacto negativo da ordem de R$ 5 bilhões.
Encarando o desafio e a oportunidade
Tendo em vista todo o agravamento da crise da mobilidade com a adoção de “soluções” tecnológicas que têm acentuado o papel do individual em detrimento do coletivo, surge o desafio: desenvolver novos serviços e modelos de negócios que, ao mesmo tempo, sejam economicamente sustentáveis e gerem benefícios para a sociedade em termos de preço, qualidade e transparência. Esse desafio é significativo, pois depende da capacidade de transformar a relação cliente-prestador de serviços sem a completa liberdade da regulamentação existente e necessária, que garante a universalidade do direito de ir e vir para todos os segmentos sociais.
A oportunidade é aproveitar as características locais, que permitem a adoção de soluções em escala por meio de soluções criativas e transformadoras. No processo de inovação, a concepção de uma ideia, o desenvolvimento de um protótipo de produto ou serviço e a aplicação/validação na prática dependem fundamentalmente da base de clientes. É comum observar que ideias se transformam em serviços, mas que não obtêm resultados sustentáveis porque a base de clientes para validação é reduzida. No caso do setor de transportes públicos, o processo de inovação já se inicia com uma massa de usuários/clientes muito grande e conhecida. Todavia, essa base é pouco explorada. Então, mesmo que um protótipo seja testado e os resultados não correspondam às expectativas, as técnicas de inovação atuais indicam que rapidamente deve-se aprender com os erros, modificar e testar novamente na base existente. Quanto maior for a base de clientes/usuários, melhor serão o aprendizado e a validação de soluções realmente inovadoras.
Obviamente, não é uma tarefa simples enfrentar o desafio de transformação da mentalidade dos atores tradicionais. Durante muitos anos, apesar de todas as dificuldades, a competição pelo mercado foi acirrada, mas os atores privados (operadores dos serviços) adotaram mudanças pontuais que lhes permitiram a sobrevivência econômica. Todavia, a situação atual exige uma atitude mais agressiva e ambiciosa.
Com a compreensão do desafio e da oportunidade, a NTU estabeleceu o conceito do programa COLETIVO de inovação, que tem o propósito de tornar a mobilidade um propulsor do desenvolvimento das pessoas nos centros urbanos. Por meio da inovação e focado nas demandas dos clientes e necessidades das pessoas, o COLETIVO agregará os atores ligados ao tema para criar um ecossistema que promova soluções inovadoras para o transporte público e assim se torne um hub nacional de inovação. Vislumbra-se que essa iniciativa contribuirá para que o setor avance rumo à competitividade voltada para a geração de valor.
Desenvolvido sob a supervisão do Conselho de Inovação da NTU, o conceito do COLETIVO foi divulgado no dia 7 de maio de 2019 em evento de lançamento em Brasília. Na primeira fase do COLETIVO, o enfoque será na formação de parcerias estratégicas, na promoção de atividades, e no fomento de relações positivas entre os atores do ecossistema para a captação de ideias e propostas inovadoras. Neste ano, várias atividades estão previstas para estabelecer o compromisso com os atores e parceiros potenciais do COLETIVO. Dentre elas, destacam-se: o 1º. Desafio do COLETIVO, para ideias e projetos inovadores; o evento de Hackinnovation; a pré-incubação de ideias, talentos e startups; as mentorias, oficinas temáticas; os eventos de melhores práticas; e o Dia da Inovação.
No longo prazo, o COLETIVO é um importante instrumento de transformação, baseado na constatação de que é preciso inovar sempre para sobreviver e até expandir os negócios.
*ANDRÉ DANTAS, é Diretor Técnico da NTU.