O novo coronavírus (Covid-19) tem sido intensamente estudado, mas seu comportamento no transporte público segue sendo uma incógnita para a ciência. Mesmo assim, algumas empresas de ônibus têm sido obrigadas a adotar medidas de prevenção no transporte público sem critério técnico e de eficácia duvidosa
Sabemos que o Sars-CoV2 é altamente contagioso, age rápido e de forma silenciosa. Passados poucos meses desde que foi notificado pela primeira vez, em dezembro do ano passado, o novo coronavírus já contaminou milhões de pessoas e fez centenas de milhares de vítimas fatais em todo o mundo. Sabemos também que as principais formas de contágio são pelos olhos, nariz ou boca, por meio do contato direto com gotículas expelidas por portadores do vírus ou com superfícies onde as gotículas com o vírus se encontram, segundo informações da Organização Mundial da Saúde.
Portanto, manter distância, lavar as mãos ou usar álcool em gel, usar máscara descartável ou de pano são medidas que efetivamente protegem as pessoas, se forem corretamente adotadas. Apesar do que já se sabe, e da busca por um tratamento e, mais especificamente, de uma vacina estar mobilizando especialistas em todos os países, ainda há muitos pontos obscuros em torno desse ser invisível e ameaçador.
Uma das questões que desafiam os cientistas é o real nível de risco para as pessoas que utilizam o transporte público. Como o isolamento social é a principal estratégia de prevenção, o senso comum sugere que o transporte público, que tende a aglomerar pessoas especialmente nos horários de pico, seria um espaço mais arriscado. Mas isso de fato procede?
Mensagens que circularam em grupos de whatsapp em abril equiparam o transporte público a hospitais, espaços que concentram pacientes reconhecidamente portadores da Covid-19, em termos de risco de contaminação. Por outro lado, colocam o transporte individual como um dos espaços mais seguros. Embora trazendo a logomarca do SUS, tais mensagens não foram produzidas pelo Ministério da Saúde e não
mencionam os estudos usados como fonte da informação.
São, em resumo, exemplo das inúmeras fake news que têm circulado desde o início da pandemia. “Esse tipo de conteúdo gera desinformação, não há fundamento nesse tipo de afirmação. Um ônibus com passageiros, motoristas e cobradores devidamente protegidos com máscara, que sigam os protocolos de prevenção, é um ambiente tão seguro quanto qualquer espaço público. E certamente mais seguro que um carro de aplicativo compartilhado por pessoas sentadas próximas sem proteção”, avalia André Dantas, diretor Técnico da NTU.
Para tentar responder a esta questão – o real nível de risco para usuários dos serviços de transporte público -, a NTU fez um levantamento dos artigos científicos publicados nas principais revistas acadêmicas internacionais da área de saúde e transportes. Foram pesquisados trabalhos sobre o novo coronavírus e similares, bem como artigos científicos que estudaram o processo de propagação de diversos vírus em ambientes específicos (como veículos de transporte) e modelos matemáticos de propagação de viroses. No final, foram identificados pouco mais de 20 artigos acadêmicos relevantes, reunidos na nota técnica “Evidências sobre Infectologia, Propagação e Impactos do Covid-19 no Transporte Público”, disponibilizada
para empresas filiadas e entidades associadas à NTU.
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O levantamento constatou que ainda existem poucos estudos sobre os riscos da Covid-19 no ambiente do transporte coletivo. Os trabalhos já publicados focam principalmente no tratamento da doença, sendo mais voltados para a questão da higiene e dos encaminhamentos hospitalares, como apresentado no Guia de Prevenção e Tratamento da Covid-19 da Escola de Medicina da Universidade Zhejian, China.
Outra abordagem comum foi a caracterização dos pacientes em tratamento, como observado no trabalho dos chineses Dawei Wang, Bo Hu e Chang Hu sobre pacientes hospitalizados com pneumonia pelo novo coronavírus em Wuhan. O estudo constatou que 98% dos pacientes tinham febre como sintoma. Isso significa que indivíduos que apresentam sinais de febre são possíveis hospedeiros do vírus, e a medição da temperatura antes de permitir o acesso de pessoas a espaços públicos pode ser uma boa estratégia preventiva.
Propagação no transporte público
Dos artigos científicos pesquisados, nove trataram da propagação de diferentes tipos de vírus no interior de veículos do transporte público ou em ambientes similares, sendo a maioria anterior ao novo coronavírus, tendo como base outras viroses.
Um dos estudos mais recentes foi realizado com dados da rede de metrô de Washington, capital dos Estados Unidos, pela pesquisadora Panchamy Krishnan, pós-doutoranda da Universidade Técnica de Delft, da Holanda. Ela usou modelos matemáticos para estimar a velocidade de propagação do novo coronavírus e concluiu que, em trens do metrô, haveria a necessidade da redução da capacidade dos veículos para aumentar o distanciamento social, porque os usuários interagem muito entre si e são altamente conectados: apenas 3 passageiros infectados poderiam propagar a Covid-19 para até 55% da população de usuários em um período de 20 dias, se nenhuma medida for adotada.
Tal cálculo não se aplica aos ônibus urbanos por serem os metrôs ambientes fechados, sem circulação interna de ar, e com número de passageiros bem superior aos ônibus. O metrô de Washington, objeto do estudo, transporta 600 mil pessoas por dia e cada composição (com 8 vagões) tem
capacidade de carregar até 1.700 passageiros.
Estudos conduzidos por Jin Yang e outros autores em 2012, focados nas redes de transportes de ônibus, constataram que a estrutura e as características dessas redes também têm grandes implicações no controle da dispersão de epidemias de doenças infecciosas. Dependendo do nível de
infecção, conclui o trabalho, haverá ou não a propagação de epidemias na rede de ônibus. Ao analisar os dados da propagação da Covid-19 na China,
Zheng Ruizhi e colegas confirmaram em artigo publicado este ano que indivíduos infectados podem ser vetores de transmissão da pandemia e, portanto, fortes medidas preventivas devem ser tomadas especialmente em cidades com distâncias mais curtas e conectividade de transporte público mais frequente (onde há mais trocas de veículos e linhas).
Por outro lado, vários estudos indicam que contaminações no ambiente do transporte público não são tão certas e podem ser evitadas com a adoção
de algumas medidas com eficácia comprovada, como uma boa ventilação. Em um trabalho publicado em 2006, Catherine Noakes, professora de engenharia ambiental da Universidade de Leeds (Reino Unido), criou, juntamente com outros especialistas, um modelo matemático para simular a dinâmica de transmissão de doenças transmitidas pelo ar em locais ventilados e demonstram que o aumento da taxa de ventilação em um ambiente confinado pode eliminar completamente o potencial de epidemia.
Da mesma forma, o professor de Fisiologia Aplicada da Universidade de Leeds, Clive Beggs, avaliou com uma equipe de colegas em 2013 os fatores que contribuem para a propagação de tuberculose em espaços fechados. Eles concluíram que à medida que a taxa de ventilação relativa aumenta, o número de novos casos de infecção cai drasticamente para as mesmas condições de exposição.
Ainda em 2013, um trabalho conjunto dos Centros de Prevenção e Controle de Doenças Infecciosas de Beijing (China) e Atlanta (EUA) avaliou a transmissão da influenza H1N1 em voos intercontinentais e concluiu que os passageiros que usam máscaras faciais tiveram menor nível de infeção comparados aos outros que não as usavam, confirmando os benefícios desse tipo de proteção. Outro estudo sobre o H1N1, realizado em 2009 na Inglaterra por Ishani Kar-Purkayastha, da Agência de Proteção à Saúde do Reino Unido, juntamente com outros colaboradores, comparou o risco de transmissão por contato social e no transporte público, no caso do transporte escolar. O trabalho demonstrou que apesar de considerável exposição a uma pessoa infectada dentro de um ônibus escolar, não houve transmissão. Os autores apresentam evidências de que outras formas de contato social, como festas, sejam mais perigosas para a transmissão e contágio de viroses.
A conclusão coincide com os dados apresentados por Andrew Cuomo, governador de Nova York (EUA): pesquisa feita num período de três dias com uma amostra de 1.000 pessoas no momento em que começava a declinar o número de internações e vítimas revelou que apenas 4% das pessoas que estavam sendo hospitalizadas usavam o transporte público regularmente. Esse resultado demonstra que há inúmeras formas de contágio que não são completamente compreendidas. Indica também que não necessariamente o transporte público é o ponto focal de transmissão da Covid-19.
Medidas sem base científica
A nota técnica da NTU conclui que ainda é incipiente a quantidade de evidências científicas especificamente voltadas para a questão da Covid-19, embora os procedimentos básicos adotados para evitar a propagação de vírus – limpeza das mãos, a desinfecção de superfícies, o uso de máscaras e o distanciamento social – sejam válidos e pertinentes para a atual pandemia. Além disso, os pesquisadores associam o risco de contágio ao modo de funcionamento do transporte público, pois este serviço permite a circulação de pessoas e o acesso a outras atividades. As aglomerações nos horários de pico do transporte público também são um fator de aumento do risco.
Há, porém, inúmeras divergências em relação aos fatores ambientais e aos condicionantes que contribuem para propagação da Covid-19 e vírus similares. Do ponto de vista específico do transporte público por ônibus, verifica-se que o desconhecimento sobre a propagação da Covid-19 tem
provocado reações desproporcionais das autoridades em relação ao papel desempenhado por esse modo de transporte.
“Órgãos gestores estaduais e municipais do transporte público têm adotado medidas diversas de higienização e restrição da ocupação no interior dos veículos sem base científica. São decisões baseadas no senso comum, que têm gerado iniciativas arbitrárias e exageradas”, avalia André Dantas, diretor Técnico da NTU e coordenador do levantamento. ”Não é um problema só do Brasil, foram identificados exageros em outros locais no mundo também”, acrescenta Dantas.
Ele cita o amplo espectro de medidas adotadas para enfrentar a pandemia no Brasil, como a higienização de veículos e terminais, limitação do número de passageiros a bordo, uso de álcool em gel e máscara para passageiros, motoristas e cobradores, entre outros. A forma de implantação dessas medidas, contudo, tem sido muito variável. Não há um padrão nacional ou instrumento metodológico único adotado pelas autoridades sanitárias ou órgãos gestores locais que orientem como e com que intensidade as ações preventivas devam ser adotadas. A higienização de ônibus, terminais e pontos de parada, por exemplo, é feita de forma diferente por cada sistema de transporte e, às vezes, por cada empresa operadora.
Uma das consequências dessa falta de padrão ou instrumento metodológico é a ocorrência de exageros nas medidas preventivas adotadas por alguns órgãos gestores municipais e estaduais, impondo às operadoras e empresas administradoras de terminais de passageiros procedimentos sem eficácia comprovada.
Um exemplo disso é o transporte de passageiros apenas sentados. Todas as recomendações da OMS referem-se a evitar as aglomerações e manter o distanciamento entre indivíduos como forma de evitar o espalhamento do vírus. Mas não há qualquer orientação ou artigo científico estabelecendo diferenças na ocupação do espaço por pessoa sentada ou em pé. “Ao contrário, parece óbvio que obrigar os passageiros a viajarem sentados, um ao lado do outro, contraria o princípio do distanciamento. Se parte estiver em pé e parte sentada, a distância entre as pessoas é maior”, observa André Dantas. “E encurtar o tempo das viagens por meio da priorização dos ônibus nas vias teria um impacto muito positivo”, completa ele.
A principal conclusão da nota técnica é que o desconhecimento sobre a propagação da Covid-19 tem provocado reações desproporcionais quanto ao papel desempenhado pelo transporte público, havendo inúmeros casos em que as autoridades locais transferem para os serviços de ônibus responsabilidades acima de suas atribuições.
Além da necessidade de estudos científicos mais aprofundados sobre a Covid-19, a nota também recomenda a adoção de planos de ações mais amplos, nos quais “o transporte público deve ser potencializado por meio de iniciativas inovadoras tanto do ponto de vista de processos e métodos quanto da adoção de tecnologia avançada”.